O embaixador Qais Shqair, chefe da missão da Liga Árabe no Brasil, assina artigo sobre o desafio do Kuwait de manter a identidade cultural e, ao mesmo tempo, o pioneirismo na área.
* Qais Shqair
Embora o pioneirismo seja um traço marcante que dignifica o Estado do Kuwait por suas contribuições culturais no meio regional do Golfo e nos países árabes, esse atributo também faz pesar uma grande responsabilidade sobre os ombros das elites culturais locais em manter e perpetuar essa liderança em um momento repleto de mudanças e transformações nas diversas esferas políticas, econômicas, sociais e científicas.
Isso posto, como alguém pode acompanhar essas transformações em um mundo conectado nas redes sociais e, ao mesmo tempo, manter sua identidade cultural, suas características e sua liderança?
É uma pergunta que talvez não possa ser respondida em um artigo, mas se olharmos a realidade de nosso amado Kuwait ao longo de décadas de liderança da cena cultural do Golfo Arábico em particular, e do mundo árabe em geral, vemos o Kuwait em seu lugar digno no mundo árabe, como parte de um todo mais amplo, incluindo as contribuições dos países, onde desaparecem as particularidades e características singulares de cada um.
Para desbravar a realidade cultural do Kuwait, devemos começar destacando sua história contemporânea e sua emergência como um estado com presença política, econômica e nacional marcante nos meios árabe, regional e internacional, além de sua multifacetada realidade cultural.
A história do Kuwait contemporâneo remonta há mais de 400 anos, quando a Cidade do Kuwait foi fundada no século XVII (1601-1700), e prosperou com a chegada da família Al-Sabah em 1128. Evidências arqueológicas indicam que a história da região como um todo remonta ao período antes de Cristo, quando os helenos colonizaram a ilha de Failaka no século VI antes de Cristo, e posteriormente às forças de Alexandre, o Grande, capturaram a ilha, que chamavam de Ícaro. No século XVI, a cidade foi fundada, e a maioria de seus habitantes eram caçadores de pérolas e comerciantes marítimos que exerciam suas atividades entre a Índia e a Península Arábica. Isso colaborou para que o Kuwait se transformasse em um centro comercial no Norte da Península Arábica, e em um importante porto da península e da Mesopotâmia. Após a descoberta do petróleo e o início de sua exportação, em meados do século XX, o Kuwait testemunhou amplo renascimento urbano e esse foi momento decisivo na história contemporânea do país.
Ao abordar a vida cultural no Kuwait, a primeira coisa que vem à mente seja talvez desbravar o ambiente em que essa cultura surgiu e o clima que a envolveu com seu calor, além da aspereza do terreno, onde as ondas do mar abraçam as areias do deserto, apagando o ardor das suas brasas, ungindo o cidadão kuwaitiano com um toque de distinção e criatividade, para ele juntar, com perfeita combinação, dois contrastes: a suavidade das brisas do mar e o rigor do calor e as brasas de seu deserto, passando para nós, com esta fusão, uma doce arte e uma cultura que se inspirou na tradição do Kuwait e de seu povo, e na tradição do Golfo, que representa a incubadora mãe dessa cultura distinta de outras culturas do mundo árabe, com vasta extensão de terra, entre a Península Arábica, Iraque e outros Países do Levante, até a Terra dos Kinanah (Egito), Sudão e os países do nosso Magrebe Árabe.
A história da cultura no estado moderno do Kuwait começa com a fundação da escola “Al-Mubarakiya” em 1911, para fazer do Kuwait um dos primeiros países em seu entorno na difusão da educação, por iniciativa do povo do Kuwait que almejava fazer evoluir a educação no país, passando dos estágios de grupos reunidos nas mesquitas para pregação religiosa, e aprendizagem nos Katatib (escolas primárias que ensinavam as crianças a ler, escrever, gramática e estudos islâmicos) para a educação formal. O primeiro diretor da escola, o saudoso Sheikh Youssef Al-Qenaei, tomou a iniciativa de arrecadar doações dos kuwaitianos, e a escola foi inaugurada em 22 de dezembro de 1911. A escola serviu como um centro cultural, e representava, junto com a escola Al-Ahmadiya, que foi inaugurada em 1921, durante a era do falecido Sheikh Ahmad Al-Jaber Al-Sabah, a educação formal até 1936. A partir de então, o estado assumiu a supervisão oficial da educação estabelecendo um conselho do conhecimento, após o qual o Kuwait passou por uma grande mudança na educação e na vida cultural como um todo. A ida das delegações estudantis para o exterior se sucederam. A primeira delas foi uma delegação em 1939 formada de quatro estudantes para Al-Azhar Al-Sharif no Cairo, que foi a sede do primeiro escritório cultural kuwaitiano no exterior.
O Conselho Nacional de Cultura, Artes e Letras representa o topo da pirâmide cultural do país e, desde sua criação em 1973, busca desenvolver a vida cultural em todos seus aspectos. Os centros culturais Sheikh Jaber Al-Ahmad e Sheikh Abdullah Al-Salem desempenham um papel importante no acompanhamento do desenvolvimento cultural no Kuwait.
As faces da cultura variam para incluir a maioria das artes e literatura. Neste aspecto vale salientar que a arte do teatro, considerada o pai das artes, tem acompanhado o surgimento da educação formal no Kuwait desde 1912. O movimento teatral no Kuwait começou no início dos anos quarenta do século passado com a fundação do teatro de improvisação e experimentação pelo artista Mohammad Al-Nashmi, com a participação de seus colegas: Oqab Al-Khatib, Saleh Al-Oujairi e Abdullah Khreibet. Era um teatro improvisado não só com os textos, mas também com suas ferramentas artísticas simples, feitas pelos próprios atores.
O trabalho teatral se desenvolveu em 1957, quando o Ministério do Desenvolvimento Social o supervisionou oficialmente, elegendo uma diretoria para ele, e o teatro popular começou a ganhar fama em outubro daquele ano. A trajetória das obras teatrais ocorreu em duas linhas paralelas: a forma improvisada e a obra escrita na linguagem clássica. Ambas abordavam o conceito social popular. O teatro árabe, fundado em 1961, anunciou o início de uma nova era da arte teatral, adotando contos clássicos em árabe gramatical. Essa tendência foi reforçada em 1963 com a criação do Teatro do Golfo Árabe, que era formado por especialistas, que buscavam a renovação, dando espaço para a participação da mulher nos trabalhos, e no ano seguinte o teatro kuwaitiano foi instituído.
Assim como o teatro no Kuwait tem como marca seu pioneirismo, a tradição e o folclore têm seu apriorismo. “Al-Malid” e “Al-Jalwa” são duas artes folclóricas associados a eventos religiosos e sociais no Kuwait. O primeiro é realizado para comemorar o nascimento do Profeta, ou seja, é semelhante ao que é conhecido como “Mawlid” no Levante e no Egito, enquanto o segundo é realizado em casamentos. As Malids são realizadas com o encontro de duas fileiras de pessoas sentadas cantando canções religiosas, com enormes tambores nas suas mãos emitindo um tom unificado em que os ombros dos participantes se inclinam para a direita e para a esquerda, entoando louvores proféticos e poemas de Dhikr (ato de devoção islâmica caracterizado pela repetição dos nomes de Deus) chamados “Sheilat” ou “Gallat” ou “Tanzilat”, e esse tipo de canto tradicional é difundido em alguns países do Golfo Árabe.
Existem outros aspectos de artes populares, incluindo “Al-Samari“, “Al-Khamari” e “Al-Ardah“, todos os quais ocupam um lugar destacado na tradição musical do Kuwait e no Golfo em geral. Al-Ardah é caracterizada por sua associação com tempos de guerra, exibindo homens e equipamentos, e elevando o entusiasmo para confrontar os inimigos. Al-Ardah é uma das formas mais ricas e diversificadas de dança tradicional, há a “Al-Ardah Al-Barriyah” (Najdiyah) e “Al-Ardah Al-Bahriyah”, que elevam o moral dos marinheiros a embarcar nos mares. Existem outros tipos de Al-Ardah, como: “Al-Razif” e “Al-Aiyala”, todas sob os cuidados do Estado de forma a preservar o legado dos antepassados e o manter o vínculo das novas gerações com a história e a cultura delas.
A arte sonora é a forma lírica (canto) mais proeminente e difundida no Kuwait e no Golfo Arábico. No Kuwait, em particular, o artista que executa esse tipo de música tinha um prestígio e apreciação especial nos círculos artísticos e literários. A arte sonora é uma antiga arte árabe que perdeu seu brilho no Levante, na Mesopotâmia e no Egito, e foi abraçada pelos Estados do Golfo, e seus vestígios ainda estão presentes em Meca e Medina. Esta arte tem raízes históricas que se estendem à Dinastia Omíada no Levante e à Dinastia Fatímida no Egito. Os historiadores afirmam que o início da arte sonora foi a partir do Hijaz e Iêmen, e se espalhou pela Índia, Indonésia e Malásia.
Os kuwaitianos estão emocionalmente ligados à arte de Áden (Iêmen), cuja música foi difundida em concertos populares (Al-Samrat) do falecido artista iemenita Muhammad Jumaa Khan. O canto kuwaitiano foi influenciado pela música iemenita, e nos anos setenta do século passado surgiu um grupo de cantores kuwaitianos que adotaram Adaniyat como estilo cântico, incluindo o artista Rashed Al-Hamali, Jumaa Al-Tararawa e Hamad Senan. O canto no Kuwait foi moldado pela natureza e geografia da sociedade, assim o canto marítimo desempenhou, e ainda desempenha, um papel fundamental na formação dos moldes do canto, que pavimentaram o caminho para a canção popular do Golfo, que ganhou atualmente grande fama fora das fronteiras da Península Arábica e do Estados Árabes do Golfo. A canção popular “Bahriyah” é formada a partir de contextos apropriados à natureza do trabalho e da vida dos marinheiros, e varia entre “Al-Zuhairi” e “Al-Muwaili“, a partir da qual muitas escolas líricas foram criadas, incluindo de escala heptagônica, hexafônica e pentatônica. O canto marítimo tem um caráter coletivo e suas canções são chamadas de “Sheila”.
Quem de nós não se lembra da revista Al-Arabi, que foi a embaixadora do Kuwait no mundo árabe, levando para todos a cultura kuwaitiana, e ficou no coração da geração dos anos sessenta e setenta em particular, e permanece até hoje um farol da cultura desde que sua primeira edição foi publicada em dezembro de 1958. A revista Al-Arabi foi distinguida entre as revistas semelhantes no Kuwait e no mundo árabe, o primeiro editor-chefe foi uma das figuras do renascimento literário moderno no mundo árabe, o grande escritor e pensador egípcio Ahmed Zaki. Entre seus editores estavam Taha Hussein, Naguib Mahfouz, Abbas Mahmoud Al-Akkad, Nizar Qabbani e outros mestres da cultura, pensamento e literatura.
O livro tem uma grande parcela do interesse do Kuwait pela cultura em todos os seus conceitos, e aqui destacamos a Feira Internacional do Livro do Kuwait, que foi realizada pela primeira vez em 1975, considerada atualmente a segunda maior feira do livro depois da feira do Cairo. O Kuwait realiza vários eventos culturais anualmente, incluindo o Festival Cultural Qurain, com duração de três semanas e que inclui várias formas de arte e literatura, além do Festival Internacional de Música, o Festival de Cinema do Kuwait e tantas outras atividades culturais.
O Estado do Kuwait atribui grande importância à preservação de sua tradição, por isso desempenhou, por meio do Conselho Nacional de Cultura, Artes e Letras, várias obras para restaurar edifícios tradicionais que contam a história do Kuwait e criou muitos museus que preservam a história, a tradição e os monumentos históricos e culturais do país, bem como museus de meio ambiente, ciências e espaço. A arte plástica também merece destaque, pois remonta aos anos cinquenta e sessenta do século passado, quando o movimento da arte plástica se prosperou, e atingiu seu esplendor entre 1970 e 1981, e representou a era do florescimento da arte plástica no Kuwait.
Isto é apenas uma gota no mar do aspecto cultural kuwaitiano, que não pode ser abordado somente neste artigo, por meio do qual visei destacar um pouco da cultura do Kuwait, com a esperança que daremos, em breve, continuidade nesta abordagem.
*O embaixador Qais Shqair é chefe da missão da Liga Árabe no Brasil